José Martinho
Há um Lacan inactual, um Lacan intempestivo e um Lacan actual.
O Lacan inactual é Jacques-Marie Émile Lacan que nasceu em Paris em 13 de Abril de 1901 e morreu na mesma cidade em 9 de Setembro de 1981.
O Lacan intempestivo é o Lacan que ainda não existe, é o Lacan do futuro, o de todos aqueles que serão ou que continuarão a ser lacanianos. Mas é sobre o Lacan actual que me debruço aqui, que é um Lacan sem passado, nem futuro, sem história ou sempre fresco, porque estrutural.
A estrutura de que vos falo é primeiramente a da linguagem e só depois a do artifício freudiano. Lacan dizia que aquilo que basicamente ensinava era a linguagem.
No começo, como diz o Evangelho segundo São João, está o Verbo. Mesmo que não seja divina, a linguagem tem qualquer coisa de eterno, que está sempre lá, antes mesmo de qualquer criança nascer. Encontramo-la já na palavra dos pais, dos padres e dos poderes, nos nomes das constelações do céu, nos dos minerais, vegetais e animais da natureza, nos dos objectos da cultura.
A força da linguagem reside por assim dizer na sua fraqueza, na sua frescura. Esta frescura da estrutura deriva da constante renovação do linguarejar quotidiano, desde o nascimento, pois cada recém-nascido aprende sempre a falar à sua maneira. Mesmo em silêncio ou pela calada, a palavra acompanha a acção humana do berço ao caixão.
É ainda a linguagem que se encontra no início da descoberta freudiana, e que passará a constituir o princípio da talking cure e a sua regra fundamental. E o que representa melhor a associação livre verbal nas sociedades contemporâneas senão a inteira liberdade de expressão que caracteriza as nossas democracias?
Foi sobretudo este renovado interesse da psicanálise pelo verbo que conduziu Lacan a Freud. «Retorno a Freud», disse ele. Esta palavra de ordem serviu para a ir à reconquista do campo freudiano, terreno que os pós-freudianos não dominavam, mas desertavam.
Lacan convida desde logo a que se volte ao princípio sobre o qual Freud fundou a psicanálise, ponto de partida descurado por aqueles que procuravam curar o ego do outro à imagem e semelhança do seu próprio ego.
Este mesmo princípio orientou a vida e a obra de Lacan: duplo percurso que desembocou no curso que animou durante mais de 30 anos em Paris, aquilo que chamava o seu «ensino».
O encadeamento dos Seminários anuais deste ensino pode-se dividir em três décadas: 1950-1960; 1960-1970; 1970-1980; e referido a quatro grandes dimensões: o imaginário, o simbólico, o real e o sinthome (1975-1981).
Médico psiquiatra interessado pelo delírio a dois, mas também pelo delírio individual e colectivo dos seus amigos surrealistas, Lacan só começou o seu «verdadeiro ensino» como adepto da associação livre freudiana no início dos anos 1950.
O verdadeiro ensino de Lacan como psicanalista inicia-se em 1953, paralelamente à primeira grande cisão da comunidade psicanalítica parisiense, a crise na Sociedade Psicanalítica de Paris e a criação da Sociedade Francesa de Psicanálise. Em 1963, Lacan afasta-se da Associação Psicanalítica de França e funda a Escola Freudiana de Paris (1964). Estas transformações fizeram que os analistas anglo-saxónicos incluíssem Lacan na «escola francesa de psicanálise», sem entender que esta é apenas um dos efeitos do seu ensino. Lacan foi sobretudo um pesadelo para os psicanalistas franceses e não só, para todos os psicanalistas que obsessivamente se submetem aos rituais institucionais.
Num primeiro momento, Lacan tratou de distinguir a liberdade de palavra proposta por Freud aos sujeitos que o procuravam e a tópica do Imaginário onde se situa o ego & Co, isto é, o ego com o seu alter-ego, ideal, narcisismo, paranóia e agressividade.
Em seguida, Lacan dedica-se ao estudo daquilo que se encontra para lá da relação imaginária Eu/outro, ou seja, a ordem simbólica que Freud formulou a partir dos complexos de Édipo e de castração, organização que repousa na função da fala.
Entre 1960-1970, Lacan defende o primado do simbólico sobre o imaginário e a realidade do real. Esta primazia era suficiente para remeter a psicanálise para o seu fundamento na palavra, e explicar que ela só é possível quando admite que «o inconsciente está estruturado como uma linguagem». É uma conclusão que se deduz logicamente do facto da «cura pela fala» ter efeitos sobre o sintoma enquanto formação do inconsciente. Ela indica, assim, que a análise supõe a existência de um terceiro plano para além da relação dual: a linguagem como estrutura comum à fala e ao inconsciente.
Com Saussure, Lacan define o elemento da estrutura da linguagem como sendo o significante. Enquanto fonema, este é a matéria-prima da palavra falada, como letra, a matéria-prima da palavra escrita.
O significante é a causa material das conversas que envolvem o ser humano e, por força, da sua realidade psíquica consciente e inconsciente. Isto permite igualmente entender que a causalidade psíquica reside não só na representação significante do sujeito, como nos efeitos de significação e de satisfação do significante sobre a mente e o corpo do falante, sexuado e mortal. É no seguimento desta conclusão que Lacan diz definitivamente adeus à Biologia, Psicologia e Sociologia.
Os efeitos de significação e satisfação variam segundo o uso e a troca das palavras. Estas podem enveredar pelos caminhos do enunciado, do apelo e da comunicação, ou pelos da prosódia, da paródia, da poética, da retórica, da lógica, etc. Por exemplo, Freud realçou o uso lógico quando afirmou que o inconsciente não conhece a contradição; e o retórico, quando falou da condensação e do deslocamento que caracterizam o processo primário do inconsciente, mecanismos que Lacan mostrou, com Benveniste, corresponder à metáfora e à metonímia. É a mesma retórica que levou Lacan a formalizar o complexo de Édipo e a libido freudiana como metáfora paterna e metonímia do desejo.
Depois de falar da realidade imaginária e da ordem simbólica, Lacan encaminha-se decididamente para o que há de mais real na psicanálise, a saber, o sintoma de cada um.
O que se encontra na origem do sintoma analisável não é uma lesão ou deficiência orgânica, nem um simples acidente; mas também não é a castração como angústia, ameaça ou até punição aplicável a toda e qualquer infracção da lei da proibição do incesto. O início da formação do sintoma está no inevitável e traumático encontro do indivíduo vivo com uma língua que o transcende, que lhe é sempre estrangeira, mas da qual será condenado a fazer a sua língua mátria ou pátria.
Ao encontro traumático com a trama da língua acrescenta-se o fantasma, o mal- entendido que infesta a linguagem, e que as famílias reproduzem a cada geração através do falatório dos ascendentes.
Sublinho que a família que mais interessa a psicanálise não é a célula da geração natural, nem a instituição social onde são satisfeitas as primeiras necessidades e cuidados. É sobretudo a família como o lugar onde a linguagem penetra o real do infans, onde gozo do ser vivo é domesticado, disciplinado pelo discurso que veicula o desejo do Outro, reduzido a uma educação de trazer por casa, nomeadamente aos vigentes direitos e deveres do pai, da mãe e da criança.
Como se formam e procriam estas famílias? De maneira geral, através de dois que não têm como fazer um, que não se escutam, nem se entendem, mas se conjugam por uns breves instantes de prazer para reproduzir o mal-entendido que os respectivos fantasmas sexuais elevaram por vezes à perfeição divina do amor. É só então que pode vir à luz o novo corpo que irá sustentar, repetir ad eternum o mal-entendido.
É assim que os homens vivem, que nascemos todos, ou nos tornamos os traumatizados e mal-entendidos incarnados que somos.
A ficção e o canto imiscuem-se deste modo na função e campo da fala e da linguagem. A língua torna-se o recanto mágico e obscuro das palavras, uma terra de ninguém repleta de equívocos, homofonias, anfibiologias, o lugar de um sedutor e abismático canto de sereias, que insidiosamente encanta aquele que fala do ser até falecer.
O mesmo é dizer que, basicamente, a língua é uma aparelhagem do gozo, antes de mais do gozo da palavra como objecto oral (fonema) ou escrito (letra).
O gozo nasce na boa hora do mau encontro com esta língua sereia, e cresce com o mal- entendido de tudo o que desde logo se perde e ganha.
Quando os psicanalistas tentam suprimir este gozo sintomático é porque desconhecem que não há ninguém que não tenha um sintoma, mais ainda, que o sintoma é intratável, incurável, que não se tempera nem elimina, pois apenas se pode refrescar.
Este é mesmo o lado mais fresco do ensino de Lacan:
«Porque é que as pessoas viriam pedir a um analista para temperar os seus sintomas? Toda a gente tem sintomas, dado que toda a gente é neurótica. Quando o sintoma não é neurótico, as pessoas tem a sabedoria de não vir pedir a um analista que se ocupe delas. A prova é que aqueles que é bem preciso chamar psicóticos não ultrapassam esta barreira, não vêm pedir a um analista para dar um jeito neles». (Intervenção em Deauville, 1978)
Que significa esta inutilidade da psicanálise face à intemperança do sintoma?
Em primeiro lugar, que a psicanálise não deve ser concebida como uma medicina da alma ou uma psicoterapia, ideia que continua a assustar muitos psicanalistas, porque acreditam que são médicos e psicoterapeutas, porque se esquecem que são sintomas.
E portanto o sintoma é o que permanece de mais realmente tangível no final de cada análise.
O sujeito não sonha quando experimenta, saboreia o gozo do seu sintoma. Não só ele é, como ama esse sintoma. Nenhuma promessa pode fazê-lo renunciar a isso. Quando é impedido de gozar, o sujeito limita-se a trocar um gozo por outro. A aposta analítica de Lacan é apenas de reduzir esse gozo do sintoma ao seu osso.
A esperança de uma cura do sintoma pela fala esmorece desde logo, torna-se mesmo uma anedota, e é o chiste e o humor que melhor ilustram então o facto que nada muda. É sempre a mesma coisa, como conta uma piada relatada por Freud no seu livro O Dito espirituoso: «a vida humana divide-se em duas partes: na primeira, passamos a vida a desejar a segunda, e na segunda desejamos voltar à primeira».
No fundo, ninguém quer mudar, o que cada um quer é falar para se separar do Outro e poder espairecer, desabrochar.
Lacan diz que o sujeito é sempre feliz, porque o sintoma como formação do inconsciente é também um substituto da satisfação pulsional.
Que a psicanálise não sirva então para nada é o que mais inquieta os que querem fazer boa figura, que estão sobretudo preocupados como o seu sucesso social, financeiro e terapêutico.
A proposta do último Lacan vai numa outra direcção: a de que a psicanálise só merece existir se o sujeito conseguir obter com ela um gozo mais satisfatório do que aquele que experimentava pelas vias da formação do sintoma (neurótico, psicótico ou perverso) e da sublimação (religiosa, científica, artística, etc.).
Ora, não é esta a ideia que vigora ainda nos mais vastos sectores do movimento psicanalítico internacional. O que aí se continua a pensar é que a psicanálise é uma psicologia que deverá encontrar o seu fundamento científico na biologia.
O último monstro nascido desta concepção chama-se «Neuropsicanálise». Apesar do sufixo, trata-se de um conhecimento que pretende ser o último grito em matéria de síntese, ainda que só tenha conseguido até agora colar algumas das novas imagens do cérebro aos ditos dos antigos exploradores do inconsciente.
A dificuldade é que o inconsciente não está no cérebro, e a pulsão não é um instinto. A psicanálise não estuda, nem trata de genes e neurónios, apenas dos problemas que a palavra cria e que só ela pode resolver.
O pulsar do inconsciente não está na tentativa de adaptação do organismo ao meio, mas no gozo da linguagem.
É nisto que a orientação que Lacan deu à psicanálise continua da maior actualidade. Só Lacan soube manter a psicanálise como oferta da palavra ao sujeito que deseja falar em seu nome, não para que esta faça desaparecer o sintoma de uma vez por todas, mas para que o encante com a sua novidade. A fala apenas pode encantar, cantar, fazer soar a voz do sintoma.
É preciso não esquecer isso, porque é a única possibilidade que existe de desatar os laços (matrimoniais, profissionais, etc.) que inoportunamente se ataram atrapalhando, atormentando a vida, e depois de reatá-los num nó que seja a própria solução do sintoma.
Sobre a Formação dos Psicanalistas
José Martinho
Este texto trata do problema da formação do psicanalista na sua relação com o ensino, a investigação e a incidência da vida institucional na prática clínica.
A posição fundamental de Freud
Freud separou explicitamente a formação teórico-prática do psicanalista de qualquer formação universitária, literária ou científica. Podemos inteirarmo-nos da sua posição fundamental sobre o assunto lendo o artigo Sobre o Ensino da Psicanálise na Universidade (1918) e, finalmente, Análise Terminável e Análise Interminável (1937).
Se o segundo destes textos fala num tom algo pessimista dos fins da análise (enquanto tratamento psíquico, busca da verdade do sujeito e realização do desejo de psicanalisar), o primeiro guarda ainda a frescura de um artigo escrito logo após a I Guerra Mundial, quando, sob a influência de Ferenczi, os estudantes húngaros de medicina procuravam incluir a psicanálise no seu programa de estudos.
Freud apoia abertamente este entusiasmo estudantil pela psicanálise, mas aproveita também a ocasião para explicar aos interessados que esta não se aprende nem depende da universidade.
Isto não significa que a psicanálise não possa ser ensinada na universidade. O psicanalista encontrará mesmo uma satisfação moral ao conquistar o seu lugar na universidade para aí cumprir o seu dever de dizer bem o que é a psicanálise.
Entre as várias coisas que tem para dizer sobre a psicanálise, convém sublinhar que esta não se fica pelo empirismo da psicologia descritiva e a especulação da psicologia racional. Para lá do interesse que se pode ter pelo sentido dos fenómenos humanos, a psicanálise visa o próprio coração do ser.
Dizendo respeito a todo o ser humano, doente ou são, a psicanálise não deve apenas ser ensinada aos médicos e aos psicoterapeutas, mas também aos que nutrem uma curiosidade pela universitas literarum, as humanidades e outros conhecimentos tradicionalmente sob a alçada da filosofia.
Contudo, só a análise pessoal e didáctica permite transmitir a psicanálise como a experiência singular que ela realmente é.
Além da análise «pessoal», o candidato a psicanalista beneficiará ainda da investigação individual e colectiva que saberá levar a cabo, bem como da sua participação nas reuniões científicas das sociedades psicanalíticas, e do controlo e contacto permanente com psicanalistas mais experientes.
São estas sociedades reunindo jovens e psicanalistas reconhecidos que a Associação Psicanalítica Internacional teve como objectivo congregar. Mas, segundo os países e as circunstâncias, a tarefa sempre foi pouco viável.
Mito e história
A Associação Psicanalítica Internacional (IPA) foi criada em 1910 para defender a psicanálise dos ataques exteriores e promover o ensino, a investigação e a formação do psicanalista.
Ferenczi apresentou ao 2º Congresso de Psicanálise de Nuremberg o documento que propôs a criação da IPA, mas a sua inspiração era claramente freudiana, como prova a descrição que fez das ameaças que pairariam desde o início sobre a psicanálise.
Freud criou a posteriori o mito da sua travessia do deserto. Na verdade, ele nunca conheceu um isolamento total, mas este mito permitiu explicar melhor a segunda época da psicanálise, o momento em que os discípulos se uniam finalmente na IPA sob a presidência de Jung. Ele serviu também para ultrapassar com mais leveza os tristes acontecimentos provocados pela demissão de Jung, bem como para justificar o imperativo que acabou por reger a terceira época, a do Comité Secreto (criado em 1913).
No documento fundador da IPA, Ferenczi falava já com receio da temível patologia das associações e grupos políticos, sociais e científicos, onde reina normalmente a megalomania pueril, a vaidade, o respeito pelas fórmulas vazias, a obediência cega e o interesse pessoal, em vez do trabalho consciencioso consagrado ao bem comum.
A história encarregou-se de tornar isto tudo uma realidade da IPA. Para remediar à patologia da instituição, Jones sugeriu que os seus membros fizessem uma incessante auto-analise. Ferenczi propôs mais: que começassem e terminassem as suas análises pessoais; e que fosse Freud a analisar o pequeno grupo que se encarregaria da teoria pura.
A ideia de um pequeno grupo de homens bem analisados capazes de teorizar e fazer frente às adversidades contribuiu fortemente para alçar o Comité Secreto a ideal da «horda selvagem». Pertenceram à partida a este Comité Secreto Freud, Ferenczi, Rank, Sachs, Abraham e Jones; mas Freud deixou rapidamente a Jones o papel do Censor, ao mesmo tempo que se foi retirando da governação da IPA.
O que pairou desde então sobre a psicanálise foi o fantasma da relação harmoniosa que devia existir entre a ciência e o pequeno grupo de teóricos bem analisados. Na altura, só Tausk denunciou o perigo de se ter feito assim da psicanálise uma religião científica.
O Instituto de Berlim
Em 1919, Eitington entra para o Comité Secreto. É ele que, entre 1922 e 1924, promove o ideal científico no Instituto de Berlim. Apesar do importante contributo que deu para a formação do psicanalista – a necessidade da análise do candidato, da frequência de seminários teóricos, da investigação e da supervisão do analista principiante –, o Instituto de Berlim defendeu teses bastante problemáticas, como a que exigia que todo o psicanalista fosse médico.
Freud nunca concebeu a análise como um ramo da medicina. Basta ler a este propósito os interessantes argumentos que apresentou na Análise Leiga em defesa de Théodor Reik.
Num texto de 1933 para o Congresso Internacional de Wiesbaden, um pouco antes da subida de Hitler ao poder, o próprio Reik criticou a ortodoxia do Instituto de Berlim, lembrando que a verdade que provoca surpresa na análise não é do mesmo tipo daquela que encontramos na ciência.
Contra a intimidação intelectual de Eitingon e do Instituto de Berlim, Reik acrescenta: não devemos acreditar que se decidiu definitivamente a melhor via para adquirir os conhecimentos analíticos. A recomendação de seguir a cadeia : análise pessoal, estudo da literatura e análise de controlo é um esquema grosseiro e insuficiente. Ficam muitas dúvidas quanto à melhor maneira de aprender a psicanálise.
Na verdade, Reik pensava que seriam necessárias pelo menos três gerações para se poder entender devidamente como se transmite a psicanálise. Só que as gerações sucederam-se e os problemas multiplicaram- se, tanto ao nível do ensino, da formação e da investigação, como do reconhecimento institucional do analista.
Após a II Guerra Mundial
Com a morte de Freud terminou o período da invenção e consolidação da psicanálise e começou o da sua expansão.
O falecimento do «pai» da psicanálise e a II Guerra Mundial fizeram com que as criticas à instituição parassem momentaneamente. Mas depois de elaborado o luto de Freud e com o fim da Guerra as críticas recomeçaram, ainda que num clima de grande incerteza quanto ao futuro.
Em 1948, Balint escreve que a atmosfera das associações psicanalíticas lembra a das cerimónias primitivas de iniciação. Foca este aspecto tribal porque observou de perto que os psicanalistas didactas tinham um espírito de sociedade secreta, com conhecimentos esotéricos, proclamações dogmáticas e técnicas arbitrárias; e que os iniciados aceitavam ritualmente as mesmas fábulas, ao mesmo tempo que se submetiam com docilidade a um tratamento bastante autoritário.
Tendo ocupado durante a guerra a posição de observador privilegiado da vida institucional, Balint era possivelmente quem estava melhor colocado para levantar estas objecções. As suas críticas incidiram essencialmente sobre as práticas kleinianas e annafreudianas da Sociedade Britânica de Psicanálise encorajadas por Jones.
Em 1952, Bernfeld denuncia o espírito prussiano que floriu na psicanálise com o Instituto de Berlim. Fala igualmente das motivações irracionais e xenófobas que começaram a afectar a instituição analítica durante a Guerra, em particular na Alemanha, bem como dos sentimentos de culpa que vieram introduzir traços obsessivos e melancólicos na formação do psicanalista.
No seu discurso inaugural como Presidente da Associação Psicanalítica Americana, em 1953, Bernfeld defende uma vez mais que o espírito médico-científico deve reinar na psicanálise, e lamenta o triste espectáculo de uma associação de médicos e cientistas querelando-se sobre os critérios da formação clínica, acusando-se mutuamente de ortodoxia e conservadorismo, ou de desvio e dissidência. Estes termos, conclui, pertencem às religiões e aos movimentos políticos fanáticos não à ciência e à medicina.
Ainda nesta mesma época, em França, Lacan explica o funcionamento da IPA pela existência de uma tendência hostil de indivíduo para com indivíduo. Ele vê o fundamento desta tendência naquilo que Freud chamou o narcisismo das pequenas diferenças; a sua consequência é o terror conformista. Ao se envolverem numa dimensão imaginária que despreza o simbólico, os psicanalistas sujeitaram-se a uma formação devastadora e estéril, não só para a psicanálise como para o pensamento em geral.
Em 1958, Szasz dá a todas estas críticas um sentido manifestamente político, explicando que o que se passa nas instituições psicanalíticas serve sobretudo para manter no poder os seus dirigentes. Entre outros exemplos, denuncia as subtilezas dos didactas nos EUA, que foram adaptando a formação do psicanalista ao tempo necessário para que o emigrante europeu obtivesse a sua naturalização. Szasz conclui afirmando que a formação psicanalítica deixou de ser um misto de ensino e de transmissão para passar a ser uma doutrina dogmática que secou a fonte viva.
Uma crise que parece não ter fim
Após quinze anos de relativa acalmia na IPA, em que graças ao abrigo que o psicanalista encontrou no estatuto médico-psiquiátrico a psicanálise passou de profissão impossível (Freud) a profissão de facto, Arlow apresentou, em 1972, um estudo sobre os quatro aspectos essenciais da formação: as diferenças culturais, a ecologia das instituições, a frequência das sessões e o papel dos analistas didactas.
O autor alerta para o facto que os psicanalistas continuam a apoiar- se de modo não critico em textos com mais de cinquenta anos. A transmissão da psicanálise seguiria deste modo o modelo medieval do mestre e do aprendiz, modelo incompatível com a vida institucional de uma sociedade científica moderna.
As suas críticas decorreram de um estudo efectuado nas secções da Sociedade Psicanalítica Americana. Arlow verificou aí que a exigência fundamental feita aos candidatos era que se identificassem com os seus formadores. Por outro lado, a teoria psicanalítica servia sobretudo a todos de romance familiar.
Dois anos mais tarde, Limentani declara que a formação praticada nas instituições da IPA se tornou antitética da psicanálise, na medida em que produz um grau de infantilização prejudicial ao processo de individuação e de maturação.
Resumindo e concluindo: aquilo que ilustra melhor o que se passou na IPA desde a morte de Freud até finais dos anos 80 do século passado são os casos de Bernfeld e Lacan. Apesar de ter sido o Presidente da poderosa Associação Americana, o primeiro nunca conseguiu introduzir na IPA as modificações que julgou indispensáveis para o ensino, a formação e a investigação em psicanálise. Por seu lado, Lacan foi obrigado a deixar a IPA em 1963 e a criar a sua própria instituição psicanalítica, a Escola Freudiana de Paris, mas acabou também por dissolvê-la, por muitos dos seus membros não abandonarem ou terem adoptado uma boa parte dos vícios da IPA.
O acme
Em 1986, Kernberg publica o seu primeiro texto sobre a vida comunitária dos psicanalistas. Fala da atmosfera paranoide que reina nos Institutos de psicanálise e que mina a sua própria qualidade de vida. Para ele também, o ensino da psicanálise ter-se-ia tornado uma espécie de doutrina contrária a uma exploração científica aberta.
Referindo-se à importância que tomou entretanto o movimento lacaniano em França, Kernberg critica a proximidade que aí existiria entre este ensino e a família de Lacan, confusão que prejudicaria a organização da instituição psicanalítica e as tarefas de formação e investigação que deve promover.
O mal prolongar-se-ia ainda numa vida quotidiana onde cada um se abandonaria com delícia às mundaneidades, compadrios e mexericos, em detrimento da prática clínica e do desenvolvimento científico da teoria analítica.
Em 1991, durante a Quinta Conferência dos analistas didactas em Buenos Aires, presidida por Kernberg, a crise na IPA chega ao seu acme. O problema da formação analítica foi situado entre caos e petrificação. Para além das questões relativas à integração ou não dos diversos quadros teóricos, os debates incidiram sobre os dois perigos considerados maiores: a tendência dos didactas para apagar toda a criatividade dos candidatos, e a formação um pouco delinquente muitas vezes proposta pelos jovens.
As críticas mais virulentas vieram de André Lussier, que atacou a rigidez sufocante das contratransferências e transferências não analisadas, falou do nepotismo ideológico das sociedades psicanalíticas, e terminou denunciando a confusão gerada por alguns interessados entre aquilo que seria uma pura revolta adolescente e uma verdadeira sede de liberdade. No final da reunião, nenhuma medida concreta pôde ser tomada para por cobro à situação.
Babel
Desde então que a confusão das línguas e a crítica no seio da IPA se aceleraram.
Aldefer denunciou ainda as péssimas consequências que continuam a ter as forças centrífugas e os sistemas organizacionais fechados (overbounded) para os Institutos de psicanálise, onde reinam critérios de admissão demasiado estritos e uma estrutura hierárquica inflexível, que conduz a decisões extremamente constrangedoras para qualquer espírito inovador.
A situação acabaria por influenciar a própria personalidade dos psicanalistas, que passaram a mostrar frequentemente o seu narcisismo, arrogância e dogmatismo, a impressão de estar acima de qualquer critica, bem como agressividade em relação aos candidatos pouco servis.
Os analistas promoveriam inconscientemente as cisões que temem, até porque estas viriam confirmar a sua ideia que o mundo é um lugar cruel e inferior, ao qual em última instância não pertencem.
Em 1996, Kernberg volta à carga com um artigo sobre as Trinta maneiras de destruir a criatividade dos jovens psicanalistas. Estas incluem a sacralização do pensamento freudiano e do passado da psicanálise, a criação de diversos obstáculos à vida social, a suspensão indeterminada das decisões que devem ser tomadas, o reforço hierárquico, o abafamento da iniciativa, a instauração de rivalidades mortíferas entre as gerações e os membros de uma mesma geração, o afastamento de todo o espírito rebelde, ou tímido, as conspirações de silêncio sistemático, a completa ausência de informação sobre a vida institucional ou, quando imperativo, informações contraditórias e imprecisas, o reforço do rumor como forma de comunicação comunitária dominante, e a exclusão de qualquer abordagem teórica que encare de frente a realidade, já que a análise pessoal continua a ser vista como o único e todo poderoso critério da reflexão.
Desde logo, o objectivo da formação psicanalítica terá deixado de ser ajudar os jovens analistas a descobrir e explorar uma realidade íntima complexa e sempre em fuga, para se tornar a infeliz protecção contra todo o tipo de questionamento dos dogmas.
Depois da presidência de Kernberg, a IPA ficou no mesmo estado em que se encontrava, aquele que ele próprio denunciou como uma perversão da psicanálise.
Três importantes artigos fizeram ainda eco às suas preocupações. O primeiro foi apresentado por Bergmann em 1995, no 39o Congresso da Associação Psicanalítica Americana, em São Francisco. Ele lembra que Tausk duvidava já, em 1910, que fosse necessária uma organização especial para promover e divulgar a psicanálise. Diz ainda não haver apenas uma verdade, mas infinitas resistências à verdade. Por esta razão, a interpretação psicanalítica devia utilizar vários modelos segundo as especificidades do caso clínico. Por fim, denuncia a atmosfera religiosa em que a psicanálise continua a banhar.
O segundo artigo, de Muhlleitner e Reichmayr, defende uma tese semelhante, fazendo simultaneamente a reconstituição histórica do que se passou desde Freud.
Froté assina o terceiro texto, que reconhece também o problema colocado por Kernberg, mas procura separar a criação de Freud da influência que este sofreu da parte do grupo que o rodeava.
Retorno à idade de ouro ou futuro a construir?
Nenhuma Sociedade da IPA apresentou até à data uma solução satisfatória para integrar os modelos de ensino, investigação e formação que se vão multiplicando no seio da instituição.
Em 2000, Kernberg publica um artigo onde resume o conjunto das suas criticas à estrutura administrativa oligárquica que controla os institutos psicanalíticos e contribui para a sua atmosfera autoritária.
Depois de afirmar que o núcleo ideológico da oligarquia da IPA confunde a neutralidade técnica com o anonimato, Kernberg refere-se ao que disse François Roustang, quando tentou justificar as dificuldades da instituição psicanalítica pela tendência geral à burocratização gerada pelos aparelhos administrativos.
Kernberg considera a abordagem de Roustang interessante, mas dando sobretudo conta de aspectos históricos relacionados com Freud e os seus discípulos. Nesta medida, ela não permite uma justa compreensão do presente e acaba por gerar insatisfação e desorientação.
O que Kernberg propõe de novo para a psicanálise é um pensamento científico e profissional, sem medos paranoides e fórmulas desonestas. Defende ainda, contra os franceses, o ideal americano de uma moralidade que vigie e puna em tribunal todo o tipo de burlas.
Diz finalmente que se os psicanalistas se sentem isolados e a sua profissão está em crise é porque passaram a consagrar-se quase exclusivamente ao exercício da clínica privada para elites culturais e classes abastadas. Nos Estados Unidos da América, eles afastaram-se expressamente dos laboratórios públicos que faziam estudos orientados para populações atípicas. Noutros países, a tendência é de não reconhecerem como verdadeira psicanálise aquela que é praticada nas instituições de saúde.
Em resumo : se a realidade efectiva rejeita os psicanalistas é porque eles a rejeitaram primeiro, quase sempre em nome da única realidade psíquica, seu fantasma preferido desde a última Guerra.
Kirsner defende mesmo que as instituições psicanalíticas acabaram por induzir as suas taras nos candidatos. Afirmação que decorre de um minucioso estudo sobre as sociedades psicanalíticas norte-americanas de Nova Iorque, Boston, Chicago e Los Angeles. Ele mostra que as autoridades locais impediam que se tivesse acesso a documentos que, paradoxalmente, eram do domínio público; mas também que tendiam a colocar os membros da instituição numa posição de perseguição paranóica. O texto explica também como os psicanalistas colaboram de modo activo no seu declínio através de Sociedades e Institutos onde o dogma substituiu o método, a desconfiança, a confiança, e o espírito de seita, o espírito científico.
Eisold trouxe também para o debate aquilo que permite considerar uma análise verdadeira ou falsa, independentemente das melhoras ou pioras sentidas pelo paciente. Normalmente, os critérios da verdadeira análise são os seguintes: a associação livre, a repetição, a rememoração, a perlaboração, a interpretação do material (sonhos, fantasias, etc.) e a análise das resistências, especialmente da transferência e da contratransferência. Só que estes critérios carecem de unidade interna e não são comuns a todos os psicanalistas.
Por esta razão é difícil, senão impossível, ensinar efectivamente o que é a psicanálise, em que difere de uma psicoterapia, mas também de promover um desenvolvimento profissional psicanalítico que seja correcto. Segundo este argumento, os psicanalistas não poderiam esquivar-se dos ataques que sofrem, nem afirmar claramente o que são e o que oferecem de particular. A formação psicanalítica tal como se processa seria, pois, inconsistente e conduzia à autodestruição.
Diante de todos estes males, alguns começaram a sonhar voltar à idade de ouro, onde a análise era só para quem a desejava. Na primeira época, a formação estava dispersa e desorganizada; o sujeito escolhia livremente o seu analista, o que por vezes o obrigava a mudar de país e até de língua. Só que tudo isto mudou para sempre.
Em vez de circularem livremente pelo mudo com as suas ideias e práticas, os analistas começaram a fechar-se no interior das instituições que os formaram, ao ponto da Sociedade Britânica apenas reconhecer como analistas aqueles que estiveram deitados nos seus divãs, idiossincrasia que faz dos outros analistas uns (quase) charlatães.
O estrangeiro tornou-se estranho e mesmo fonte de angústia para muitas Sociedades da IPA. O que visam sobretudo é salvaguardar-se de qualquer exame sério do seu funcionamento. Como pretendem normalmente ser as únicas sedes do saber no seu local, ignoram o resto. Protegem-se, ainda, contra as transformações que se tornaram imperativas para a sua própria sobrevivência, em particular porque temem que o seu sistema de castas caia.
A questão coloca-se, pois, de saber onde e como os futuros analistas da IPA poderão encontrar uma instituição que lhes ofereça realmente uma investigação, um ensino e uma formação dignas destes nomes.
A «Escola» e o «passe» de Lacan
O problema maior seria de entender como os adeptos da obra humanista de Freud foram conduzidos a uma organização institucional semelhante à de uma igreja ou de um exército, ao mesmo tempo que concebiam a psicanálise como uma ciência positiva.
O que Lacan trouxe para este longo debate deu origem a diversos mal-entendidos. Vou apenas tentar esclarecer aqui alguns deles.
Começo por lembrar que Lacan se formou como psicanalista na IPA e desempenhou nesta instituição importantes cargos enquanto docente e didacta.
Mas com a primeira cisão do movimento psicanalítico francês (1953), iniciou-se um processo que levou a IPA a retirar estas prerrogativas a Lacan. Rejeitado, ele abandona a IPA em 1963; mas dado que foi seguido muitos dos que em França apreciavam o seu ensino, viu-se obrigado a criar, em 1964, a sua própria Escola de psicanálise.
Lacan chamou a esta Escola Freudiana, porque, para o inventor da psicanálise, o essencial da formação psicanalítica consistia no efeito didáctico obtido no final da análise. Lacan pensou também que os psicanalistas deviam se “formar” a partir da análise das suas formações do inconsciente.
Na talking cure é a palavra que está no início e serve de meio de acção; por sua vez, a análise acaba quando aquele que fala ao analista reconhece, como seu, o desejo de psicanalisar.
Desde 1957, em A Psicanálise e o seu Ensino, Lacan defende que o ensino elementar da psicanálise deve se basear na teoria significante. Não é uma simples opinião, mas a consequência do seu retorno a Freud.
Efectivamente, o postulado e a regra fundamental (falar livremente) da talking cure remeteram Lacan, desde o seu primeiro discurso de Roma (1953), para a importância da função e do campo da fala e da linguagem na psicanálise.
Explica que não é apenas o facto que tudo na análise parta e passe pela fala do analisando; são os próprios conceitos psicanalíticos, a começar pelo inconsciente e a pulsão, que perdem a sua pertinência prático-teórica quando não são elaborados como efeitos bizarros da palavra sobre o organismo físico e psíquico.
O ensino elementar da psicanálise devia, pois, incidir sobre a primazia do significante na experiência. Mas este ensino não é a mesma coisa que a transmissão da psicanálise. Para os distinguir, Lacan separa os conteúdos que o analista pode ensinar e a forma singular, o estilo, com que cada um transmite a (sua) psicanálise.
Nos estatutos da Escola Freudiana de Paris (EFP), Lacan avisa ainda os analistas que o ensino da psicanálise acarreta um perigo – quem ensina fá-lo a seu risco –, na medida em que cada analista apenas pode falar em seu nome, melhor dizendo, em nome do objecto que, depois da análise, causa o desejo (de ensinar a psicanálise como a entendem e praticam).
Os psicanalistas correm sempre o risco de cometer erros e dizer asneiras quando ensinam. Mas o risco relativo à invenção de Freud aumentou quando os acontecimentos de Maio 1968, em França, conduziram à criação do primeiro Departamento de Psicanálise, na Universidade experimental de Paris VIII.
Os rituais obsessivos de muitos psicanalistas foram então abalados pelo o que se passava nas ruas. Daí que se tenha podido pensar que havia uma psicanálise «reaccionária» e outra «revolucionária», e que era esta última que tinha entrado na universidade de Vincennes com a contestação.
Ora, o facto da psicanálise ter penetrado de modo intempestivo na universidade obrigou Lacan, no chamado Impromptu de Vincennes, a regressar à diferença freudiana entre psicanálise e universidade.
Como outrora Freud com os estudantes húngaros, Lacan preveniu os estudantes franceses que as «unidades de valor» que eles podiam obter no novo Departamento de Psicanálise nunca fariam deles psicanalistas.
Neste sentido, disse-lhes que aquilo que eles buscavam era sobretudo um Mestre mais consistente. Seria, pois, preferível que os professores e estudantes realmente interessados pela psicanálise deixassem a histeria e procurassem um analista.
Estes propósitos estão formalizados na teoria dos quatro discursos (Discurso do Amo, Discurso da Universidade, Discurso da Histérica e Discurso do Analista), que Lacan apresenta na sua Alocução sobre o Ensino à EFP (1970) e no Seminário O Avesso da Psicanálise (1969-70).
Lacan define então o “discurso” como sem falas (discours sans paroles), uma fórmula escrita composta apenas por pequenas letras como na álgebra. Por sua vez, a articulação destas letras conduz a formulações que ensinam alguma coisa independentemente de quem a ensina.
Aquilo que o discurso do Amo ensina de essencial é a base estrutural de todo o poder: quem se aliena ao significante – caso do indivíduo da nossa espécie – passa a obedecer-lhe. Numa análise, o Amo ou quem manda é o inconsciente.
O discurso da universidade é uma transformação histórica do discurso do Amo: a anexação e assimilação, pela instituição universitária (medieval), do saber adquirido numa experiência radicalmente outra.
A universidade cria as figuras do mestre e do aprendiz, do professor e do estudante. O saber que o professor ensina tende a apresentar-se como verdade universal, mas já está muitas vezes ultrapassado, normalmente burocratizado, ao serviço de um poder que muda e conduz a universidade a crises correspondentes a estas mudanças. A universidade contemporânea, por exemplo, sofre sobretudo da aliança da ciência e do mercado. Daí as dificuldades crescentes que nela conhecem as Humanidades.
O discurso da histérica é o das revoltas individuais, mas que podem levar a movimentos de contestação de massa como aconteceu em Maio de 1968. Através de revoluções ou de reformas, conduzem sempre ao novo poder.
Não se trata apenas de psicopatologia, pois a estrutura do discurso da histérica é homóloga à do discurso da ciência. Efectivamente, a negatividade do sujeito histérico tem semelhanças estruturais com a rejeição do sujeito pela ciência moderna.
O discurso do analista também é uma transformação histórica do discurso do amo, mas com a vantagem de mostrar o avesso do poder. De facto, tanto para o analisando, como para o analista, o final da análise é uma situação excepcional de perda total do poder. O discurso do analista mostra, ainda, que existe um hiato entre o poder e o saber, pois este último só pode emergir no lugar de uma verdade não-toda, que ninguém possui.
Lacan já tinha dito, nos Escritos (1966), que a verdade não é a ciência. A ciência moderna, com a qual Descartes sonhava dominar a natureza, difere da épistemè antiga, a qual não era independente da anamnése. A ciência dos modernos pretende ser positiva e objectiva, mas a verdade que mais continua a contar – como mostra a psicanálise – é a que revela cada um.
Na Allocution sur l ́enseignement, Lacan distingue ainda entre saber e verdade, até porque a IPA também os distingue à sua maneira. Só que:
1- Pensa-se, na IPA, que existe um saber sobre a verdade e, a partir deste postulado, defende-se que o saber psicanalítico não deve ser divulgado aos pacientes para não os prejudicar. Ora é precisamente esta censura que instala o silêncio e o esoterismo.
2 – Pensa-se, ainda, que o saber psicanalítico sobre a verdade do sujeito pode ser falso ou não científico, o que leva a condenar todos os que não frequentaram os seus Institutos e divãs. É deste modo que a IPA passou a acreditar que tem nas suas listas de didactas verdadeiros cientistas da psicanálise. Assim se formam as castas que depois denunciam.
Para Lacan, o saber está do lado do sujeito e é basicamente inconsciente. O sujeito sabe praticamente tudo o que necessita para viver e até para ser feliz, para gozar no seu corpo, a ponto de parecer milagre que procure um analista.
Para mais, um saber já sabido, instituído de uma vez por todas sobre a verdade do sujeito não tem pertinência. O que conta sobretudo é o saber que não se sabe. Ora, este último apenas se vai dizendo no lugar da verdade que surpreende o analisando e o analista.
É só depois que se pode tentar formalizar e ensinar este saber surpreendente; mas o analista – como defenderam Freud e Lacan – tem sobretudo o dever de suspender tudo o que sabe à entrada de cada sessão de análise.
Dito isto, quem deve ensinar a psicanálise? Preferencialmente, quem levou a interpretação do desejo inconsciente e o assédio da sua satisfação pulsional até ao fim, ou seja, o psicanalisando que se tornou psicanalisado e depois psicanalista. Mas como ter a certeza que isso aconteceu? Foi para saber algo mais do final didáctico da chamada «análise pessoal» que Lacan criou na sua Escola o passe, um dispositivo inexistente na IPA e que conduziu a várias dissidências no movimento lacaniano. o “passe”.
No passe, o analisando que se encontra no final da sua análise fala do emergente desejo do analista a dois outros candidatos, que por sua vez transmitem o testemunho a um júri nomeado pela Escola. Lacan contava com este precioso testemunho para poder reconhecer como se produz o novo na teoria da prática analítica, mas também para subverter devidamente as hierarquias que se fundam no silêncio, ou no conhecimento acumulado ao longo dos anos pela casta e suficiência dos didactas.
Uma coisa é certa: só aquele que terminou a sua análise está em medida de fazer algo mais do que ensinar o que ele e os outros já sabem, isto é, de reinventar a psicanálise.
Mas quem não é analista e respeita o princípio, o meio e os fins da psicanálise também a pode ensinar. Neste caso, trata-se unicamente de ensino, não de transmissão e menos ainda de invenção da psicanálise.
Analista ou não, quem ensina endereça-se sempre a um outro. O analisando endereça-se também ao seu analista, mas o analista, quando ensina, encontra-se em posição de analisando.
Quem é o outro a quem realmente se endereça? Mais do que ao público a quem se pode adaptar, é sobretudo ao objecto em que a sua análise o transformou, e que causa o desejo (de analisar, ensinar a psicanálise, etc.), que o psicanalista se dirige.
É este objecto que vai também sobredeterminar o estilo da sua enunciação; e o que se pode dizer de um ensino da psicanálise que traga a marca deste estilo é que não deixa de causar embaraço, dentro e fora da Escola onde é ensinado. Foi o caso de Lacan.
Só o acto analítico salva o psicanalista das aulas de psicanálise. O que melhor testemunha deste acto é a falta de abrigo que o psicanalista encontra na universidade, na política, na sociedade em geral e até nas sociedades psicanalíticas.
Lacan não se contentou em invocar o acto analítico e a fazer um Seminário sobre o mesmo tema (1967). Em 1972, no Étourdit, afirma que só o matema se ensina; e, em 1974, reorganiza o ensino do Departamento de Psicanálise de Vincennes com base no matema.
Será a orientação do matema um retrocesso relativamente ao acto analítico? Não. Aquilo de que se trata uma vez mais é do combate das Luzes contra o obscurantismo e o huit-clos dos psicanalistas.
É efectivamente importante que os analistas passem o teste do discurso da universidade quando ensinam, para não se limitarem ao silêncio místico, às opiniões que pretendem ser objectivas, ou aos entusiasmos falsamente poéticos.
O matema introduz um rigor novo no discurso universitário. Ele não é apenas um conhecimento, é uma letra sem o mínimo sentido, ou uma fórmula lógica, que se pode ensinar integralmente. Como na ciência, alguém teve de enunciar um matema pela primeira vez; mas quando este se mostra válido no seu domínio, cada um deve aprendê-lo à sua custa.
A relação da psicanálise com a ciência passa forçosamente pela produção dos matemas que são específicos à experiência analítica. Lacan mostrou que estes matemas eram possíveis.
Por mais rigoroso que seja, o que o psicanalista ensina não é nada que consiga dominar. O denominado controlo também não controla nada, pois o que o analista diz ao seu «controlador» tem sobretudo valor de sintoma. Foi o sintoma analisado que levou Lacan a dizer que pode existir um verdadeiro ensino e uma verdadeira investigação (ainda que preferisse normalmente quem encontrava a quem procurava) em psicanálise, mas que não há formação, nem transmissão da psicanálise.
O sintoma pós-analítico implica que aquilo que resta a cada a analista principiante seja reinventar a psicanálise. Melhor dizendo, ele está condenado, e convidado, a inventar a psicanálise que pratica.
Uma verdadeira Escola de psicanálise não pode ignorar este dado de estrutura. Mas é ainda conveniente que o analista testemunhe do que encontrou na busca da verdade do seu sintoma, e o elabore numa transferência de trabalho com os seus colegas, para que o objecto atípico possa também instruir.
Hoje
A instituição que representa A IPA em Portugal, a Sociedade Portuguesa de Psicanálise, vive também hoje uma profunda crise institucional e de liderança.
Para sair da actual estagnação, a IPA tem vindo a apostar:
1) Na procura de standarts que permitam aplicar aos candidatos (262 admitidos em 2001 e 143 em 2002) testes medindo a prática clínica correcta (referral tests). Renik (2002) e Tucket (2005) comentaram recentemente alguns dos problemas colocados pela transparência e não só destes testes.
2) Na correspondência que poderia existir entre os conhecimentos psicanalíticos e a neurobiologia do cérebro. Juntamente com a neuropsicanálise promovida desde há alguns anos pela Sociedade Britânica de Psicanálise, o ex-presidente da IPA, o argentino Horatio Etchegoyan, foi um dos principais promotores desta abertura da psicanálise às neurociências. O actual presidente da IPA, David Wildöcher, é para mais um fervoroso adepto das técnicas cognitivo-comportamentais.
3) Finalmente, tem havido da parte de P. Fonagy e outros autores um desenvolvimento da investigação empírica, como a construção de questionários para avaliar questões de interesse interno e público.
Após Lacan ter dissolvido a Escola Freudiana de Paris, a galáxia lacaniana fragmentou-se e formou-se uma espécie de nebulosa, que tem hoje como estrelas mais brilhantes a Associação Mundial de Psicanálise, criada por Jacques-Alain Miller em 1992, e a Associação Freudiana Internacional, liderada por Charles Melman. As representantes em Portugal destas duas instituições são, respectivamente, a Antena do Campo Freudiano e o Centro Português de Psicanálise. Nos dois casos, tratam-se de grupos pequenos e ainda recentes, com dinâmicas que não levaram até à data aos resultados esperados.
Aquilo que se tem defendido ultimamente entre os lacanianos – para além da necessidade de manter o passe através do qual a sociedade civil pode obter a garantia de qualidade oferecida por um Analista da Escola (AE) – é o desenvolvimento da chamada psicanálise aplicada às instituições, já que a psicanálise praticada em consultório privado está sobretudo a ser procurada por aqueles que pensam vir um dia a ser psicanalistas.
Conclusão provisória
O leitor não deve ler como um qualquer pessimismo estes propósitos sobre a formação psicanalítica.
Enquanto a psicanálise for uma talking cure, ela estará sempre ao serviço do desejo do ser falante, desejo imperecível, que nenhuma prova médico-científica pode desqualificar ou destruir.
As ameaças políticas que pesam actualmente sobre a psicanálise terão também de ser passageiras, porque não existe relação social que não se funde num discurso. Para mais, é um sucedâneo do discurso do analista que impera no que resta hoje de liame social: a liberdade de expressão democrática e a réstia de gozo oferecida no mercado ao cidadão pelo objecto de consumo, numa época em que a depressão e o terrorismo se alastram pelo planeta.
Assim, o principal perigo para a psicanálise só pode vir do psicanalista que se limita a viver a sua existência com uma inércia proporcional às tentativas actuais de a enterrar.
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