- José Martinho
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imagem: O Sultão e Xerazade ou Freud e a Histérica - Pintura de Luís Barreiros Tavares
Basta pegar num livro para constatar que é algo de sólido. Trata-se de um objeto duro, trabalhado. Por vezes, de um objeto que se eleva à categoria de obra de arte. Mais correntemente é uma mercadoria, um produto de mercado, que se pode comprar e vender, trocar ou oferecer.
Na nossa tradição, o Livro, no singular, é a Bíblia. Pressupõe-se que foi Deus que soprou o texto aos autores e, por esta razão, mais do que um livro santo, a Bíblia é um escrito inspirado.
Para falar da importância do livro podia me limitar a falar da Bíblia. A Bíblia não foi só o primeiro livro impresso, mas o livro mais lido de todos os tempos, o maior dos best-sellers. Para mais é um livro tão sólido que serviu de fio-de-prumo e pedra de toque na construção de pelo menos três religiões ou civilizações (judaica, cristã e muçulmana).
Em grego, «bíblia» significa «livros», plural neutro. Mas na Idade Média, os Doutores da Igreja Católica, Apostólica e Romana viram nesse conjunto o «Livro dos livros». Deduziram que não valia mais a pena escrever outros livros. Por esta razão, quase toda a cultura medieval não passou de um comentário da Bíblia.
Este Ideal do Livro caiu nos Tempos Modernos. Foi visto finalmente como uma das formas do paradoxo que Bertrand Russell formulou no século XX, a saber, que o catálogo dos catálogos não pode ser incluído no conjunto dos catálogos sem se confrontar com a incompletude ou a inconsistência lógicas. Do mesmo modo, não é possível que o Livro que contém todos os livros se contenha a si próprio.
Isto não impediu que importantes escritores como Baudelaire, Mallarmé ou Pessoa tenham defendido que a torrente da vida devia desembocar no Livro. O Ideal de solidez repete-se como expectativa ou acto falho.
Na psicanálise não há Livro único. Deus nos livre. Só existem livros, a começar pelos do seu inventor. Mas não existem apenas os escritos de S. Freud. Há também os de M. Klein, de W. Bion e de J. Lacan, para citar apenas três nomes de grandes mestres. É verdade que na Psicanálise existem mestres, mas não um dogma. Na realidade, há ainda muitos outros livros escritos e por escrever.
Um pouco de história
Freud interessou-se bastante pela literatura, não só pela literatura científica, médica e psicológica, como pela literatura filosófica, a antropológica ou a literária.
Este interesse não impediu que os escritores e mais geralmente os artistas tivessem desconfiado bastante da psicanálise, por não acreditarem nela, por a considerarem demasiado centrada no umbigo dos indivíduos, ou, ainda, por recearem que lhes retirasse o dom ou a capacidade de criação. Mesmo assim, houve escritores muito próximos de Freud, caso de Romain Rolland, ou de Arnold e Stefen Zweig, que se inspiraram na sua invenção para escreverem alguns dos seus textos.
Com André Breton conhece-se um verdadeiro entusiasmo pela psicanálise. Seguindo a velha ideia da afinidade entre o génio e o louco, os surrealistas tentaram explorar a genialidade que pode emergir da «salada de palavras» da loucura. O seu método consistiu em transformar o delírio e até a associação livre em escrita automática. A linguagem onírica contou também muito para eles. Para poder revelar o mistério dos sonhos, Breton decidiu mesmo ir visitar Freud em 1921, mas saiu da casa deste desiludido e crítico, ainda que tenha mantido a sua grande admiração pela «bruxa de Viena».
Apesar do caminho direto que vai do livro ao divã ser um malentendido, e vice-versa, têm havido cada vez mais psicanalistas que escrevem romances habitados pela psicanálise1. Os heróis destes textos podem ser os próprios psicanalistas, os pacientes, ou simultaneamente ambos. Esta literatura mostra o vigor que a psicanálise aparenta ainda ter hoje.
Mesmo se é um caso inédito no nosso país, um romance de Lídia Jorge, Combateremos a Sombra (Dom Quixote, Março 2007), é mais um desta série. O herói, Osvaldo Campos, é um psicanalista, que para mais – graças ao que lhe conta a sua paciente preferida, Maria London – se implica no social. Revelo um pouco do final da história para dizer que acaba assassinado. Podemos fazer várias interpretações deste fim, por exemplo, que a vida e morte do psicanalista português talvez não sejam independentes do título do último ensaio de Miguel Real, «A Morte de Portugal» (Campo das Letras, 2007).
Num outro romance, The Analyst, o autor, John Katzenbach, conta a história de um analista que recebe uma carta de um antigo paciente dizendo que o quer matar, mas que vai sobretudo fazer com que ele se suicide (Katzenbach, J. (2008). El Psicoanalista, Buenos Aires: Latorama)
Será que a influência da psicanálise na sociedade, e em especial na medicina e na cultura portuguesa, também morreu? Algum interesse parece permanecer, pois «O mal-estar na civilização» de Freud foi pela primeira vez traduzido e editado pela Relógio d ́Água.
Há também um antigo rumor que faz com que a psicanálise seja ainda vista por cá e noutros lugares do planeta como uma boa mãe ou uma velha amiga a quem nos podemos confiar. As revistas femininas têm-na igualmente utilizado à maneira dos cremes que prometem juventude e saúde. Mas uma nova onda positivista, com origem nas recentes descobertas das neurociências, e influenciada pelos pedidos sociais de estatísticas, tem vindo progressivamente a afogar as palavras e os escritos inspirados pela psicanálise. É uma espécie de realização do que Musil previra no seu «Homem sem Qualidades», uma entrada na era do Homem Quantidade de Quételet. É neste mundo da avaliação numérica generalizada que várias mulheres e homens de letras (como Philippe Sollers ou Bernard Henry Lévi) têm vindo a público defender a psicanálise – sobretudo a de «orientação lacaniana» (J-A Miller) como resposta ao impasse a que chegou a civilização.
Dito de outro modo, há ainda quem continue a supor que aquilo que se diz no divã do psicanalista é a melhor fonte de informação e de transformação da realidade externa e interna.
Divã
A civilização Ocidental, e mais particularmente europeia é uma civilização do Livro. O divã vem do Oriente. O termo «divã» deriva do persa «diwan», primeiramente a sala do Sultão, guarnecida de tapetes e de sofás com almofadas, e depois, por extensão, o governo turco no seu conjunto.
A civilização persa recomeça a ter alguma influência na cultura da Europa depois do Iluminismo. O livro que Alain Grosrichard publicou há alguns anos na colecção Champ freudien, A Estrutura do Serralho, é uma excelente introdução a este tema.
Divã Ocidental Oriental e mais particularmente o Goethe da maturidade, que imita os textos Hafis, são uma prova concreta da penetração da poesia lírica persa na Alemanha.
Um grande admirador do poeta e futuro Prémio Goethe, Freud, tinha mesmo um divã que se parecia com um divã turco. Há até quem tenha sugerido que a história inicial de Freud com a Histérica é parecida à do Sultão com Schéhérazade.
Nos Contos árabes das «Mil e uma noites», o rei da Pérsia, Shâhriar, foi traído pela mulher. Cego de raiva, resolveu casar-se todos os dias com uma virgem, que matava na noite de núpcias antes do nascer do sol. Shéhérazade, filha do grande vizir, decidiu acabar com o massacre. Durante a noite de núpcias do seu casamento com o Sultão, começou a contar-lhe uma história no divã sem a terminar. O esposo quis conhecer o resto da história e deu-lhe mais um dia de vida. Este estratagema durou 1001 noites. Por fim, o Sultão decidiu guardar Shéhérazade consigo. Uma das lições deste conto é que a palavra pode salvar a vida.
É também este o princípio da talking cure. Porém, se a palavra é necessária na psicanálise, ela não é suficiente. Digamos que há outra coisa para além da palavra.
Para vos dizer do que se trata, começo por me servir de mais uma indicação etimológica: o termo francês «douane» (alfândega) deriva igualmente do persa «diwan». Isto significa que o divã analítico – espaço no qual a fala do analisando sobressai em detrimento da estrita observação médico-psicológica – pode também ser encarado como uma fronteira ou linha de demarcação entre a fala e a tal «outra coisa»
É o deitar e o levantar do divã que separa as águas da liberdade de palavra e as do fim desta liberdade, aquilo que podia chamar o «impossível de dizer». Isso traduz-se no espaço de tempo da consulta analítica quando, no final da sessão, o sujeito da associação livre é forçado a abandonar o contrabando das palavras e a pagar o preço por aquilo que transporta clandestinamente.
O contrabando de palavras reside no que chamávamos «diálogo» e agora «comunicação». Na «comunicação» analítica, o analista é suposto ocupar o lugar do interprete capaz da compreender a mensagem do analisando. Mas esta revelação do sentido escondido não é suficiente, pois após a pontuação que marca o termo da sessão, o analisando que se levanta do divã deve, ainda, pagar a taxa aduaneira que é o honorário da consulta.
Numas outras Jornadas do CEP, propus que concebêssemos este pagamento como a maneira de fazer com que as palavras ditas na sessão tenham um preço, e com este um peso que não as transforme em fala vazia. O pagamento salda também a dívida do sujeito em relação a quem cuida dele, neste caso o analista.
Mas Freud não inventou o divã para fazer render o peixe analítico, alienando indefinidamente o sujeito a um Poder semelhante ao do Sultão no Império Otomano. Importa lembrar que, um dia, o sujeito se levanta do divã para não mais voltar. Convém, então, que tenha terminado definitivamente a sua análise, para que possa realmente desejar e usufruir do que aí disse.
Dou-vos agora um exemplo deste novo gozo do sintoma. Trata-se do caso de um rapaz chamado António. Nasceu numa aldeia e sempre se mostrou bastante critico relativamente à pobreza intelectual do meio de onde provinha. Em criança, António escrevia poemas e dizia que queria ser escritor. Mas o adolescente apenas conseguiu tirar com muito esforço um curso de assistente social. Afligia-o sobretudo agora o facto de não encontrar uma mulher com quem se pudesse casar e constituir família.
No divã, contou que as grandes dificuldades começaram no dia em que houve a «intervenção da polícia». Era a expressão com que designava as alucinações verbais que tinha tido na noite em que fugira ao seu primo, depois deste o ter feito sentir «maricas». A «intervenção da polícia» eram as vozes que o torturavam por ter fugido, em especial a voz da tia e mãe desse primo, que tinha sido o seu melhor amigo de infância, por assim dizer, o seu irmão de então.
Anos mais tarde, deitado na sua cama, veio-lhe à cabeça um spot publicitário que vira um dia, onde um jovem motoqueiro perdia as suas calças de marca «Lévis». Uma bela mulher ruiva encontrava as calças e ia à procura do dono, entrava numa fábrica e via um homem de torso nu a trabalhar. Fazia-o experimentar as calças, estas serviam-lhe e ela elegia-o como seu amante. António dirá em análise que ficou fascinado por este filme porque ele lhe propunha uma solução fantasmática para vestir o «homem nu» que ele era desde a «intervenção da polícia».
A virilidade sempre tinha estado do lado do seu primo e sobretudo do seu pai, dois belos machos latinos muito reputados na sua terra, em comparação com os quais se sentia sempre pequeno, feio e gordo. O pai não parava aliás de lhe dizer que, quando tinha a idade dele, já tinha possuído inúmeras mulheres.
Tanto o pai como o primo abandonaram-no no momento em que ele mais precisava deles, ambos para se dedicarem ao que chamava as «três B», Bebida, Brigas e Beldades. António também não esperava nada da sua mãe. Por felicidade, havia um pedreiro lá na aldeia que falava com ele e de certo modo o adoptou. Foi assim que António se tornou aprendiz de pedreiro.
Havia também uma avó que se despia diante do pequeno António pedindo-lhe para lhe lavar as costas. Foi o corpo desta avó que forneceu o modelo de mulher alta e delgada que atraía o olhar do petiz. Era em casa desta avó que ele e os seus pais moravam. Era também com ela que ele dormia em pequenino. E pois normal que fosse ela a encarnar para ele o Outro severo e cheio de vícios escondidos que desejava e temia.
Uma figura feminina combinada da avó e da mulher do spot publicitário fez com que António se tornasse um dia o instrumento de gozo de mulheres mais velhas (entre 40 e 50 anos) que procuravam rapazes novos para se divertirem. Transformou-se deste modo num prostituto, um sósia de macho latino.
Mesmo se foi deste modo que passou a servir o Outro, o gozo próprio de António não se situava aí. Este gozo foi pouco a pouco direccionado para a prática da letra, ao ponto de um dia ter dito ao analista que mais não era que um «letrista».
Ao mesmo tempo que deixara a ideia de vir a ser assistente social, António retomou a prática da escrita abandonada desde a infância, mas à maneira de um aprendiz pedreiro, para construir uma fundação para o que ruía.
É ao se denominar e reconhecer como «letrista» que António identifica a originalidade do seu novo sintoma. Transforma, deste modo, o sintoma típico (psicótico) que o perturbava num sintoma individual.
«Letrista» não é poeta, nem romancista, nem escritor ou homem de Letras. É um nome próprio que não supõe, nem implica nenhuma elevação simbólica, nenhuma aspiração a um ideal social. Trata-se de uma espécie de autógrafo, de rabisco que se limita a assinar o artifício que a análise conseguiu produzir como suplemento à tia e ao primo, ao pai, à mãe e à avó.
António serve-se aqui da língua comum à sua maneira. O quase neologismo que criou com a palavra «letrista» fora do seu contexto habitual (por exemplo letrista de uma canção), assinala o jogo, e a regra, daquilo que está para além do gozo do Outro de que ele é o instrumento, permitindo abrir aí uma brecha, construir algo à parte, um traçado onde o sujeito pode continuar a existir fora da medicamentação e do hospital onde outros alucinados moram.
Dizer e ditos
Volto aos livros. Como alguns sabem, iniciei há anos a publicação de um série de livros intitulada «Ditos» (Edições Fim-de-Século). Quando apresentei publicamente o primeiro volume desta série, servi-me de uma frase do «Étourdit» de Lacan: qu’on dise reste oublié derrière ce qui se dit dans ce qui s’entend. Traduzo livremente: «que se diga fica esquecido por detrás do que é dito naquilo que se escuta».
Queria que o leitor mais ingénuo não ficasse a pensar que os ditos que tinha acabado de fixar na forma de escritos eram definitivos. A publicação era apenas a solução que tinha encontrado para não passar a vida a redizer ou reescrever o que já tinha dito. Significava também que o livro era um paper in progress, como dizem os ingleses, um articulado de uma progressão em série. Era isso que me parecia realmente sério.
É no segundo ensino de Lacan que encontramos a diferença entre «dizer» e «ditos». Freud falou de «latente» e «manifesto», e a linguística moderna de «enunciação» e «enunciado». Estes termos de alguma forma correspondem-se.
Porque é que não devemos confundir o «dizer» com os «ditos»? É que, por exemplo, posso dizer algo e depois desdizer-me ou até contradizer-me. A lógica aristotélica acha esta atitude do sujeito da enunciação em relação aos seus enunciados irresponsável, até indecente, mas a verdade é que ela é bastante comum. A lógica hegeliana tentou resolver o problema pelo recurso à História, afirmando que aquilo que é verdade hoje, pode muito bem não ser verdade amanhã.
A História é uma maneira de afirmar a variedade da verdade e até de pensar a reconstrução analítica, mas o problema que queria focar é o seguinte: se os ditos são sólidos, podem como a Bíblia fazer história, o dizer é líquido.
Foi J-A Miller que propôs esta metáfora no último mês de Março, durante o Curso que anima em Paris, uma série que denomina «orientação lacaniana». Temos sempre grande dificuldade em lidar com o que é líquido. Heraclito de Efeso não parou de dizer que nunca nos banhamos nas mesmas águas do mesmo rio; ou que o deus Logos, a linguagem, a razão e tudo o que daí se depreende são tentativas, infrutíferas, de aprisionar o que é líquido. Do mesmo modo, fantasiamos e tentamos aprisionar o líquido em vasos, garrafas, bilhas, contentores. É por exemplo assim que Bion se imagina o que seria uma boa mãe.
Não existe apenas o velho horror do vácuo, há também o horror do líquido. Este pavor pode levar-nos à tentação de liquidar o que é líquido. Perderíamos, então, o principal, o «dizer» ou o «acto da enunciação».
É este acto que tem os efeitos mais incalculáveis ou não repetitivos sobre o corpo e a mente. Isto também na análise, tanto do lado do analista, como do analisando. Por exemplo, o que Freud chama «formações do inconsciente» e «vicissitudes pulsionais», mais não são que formas do hiato entre a enunciação e o enunciado.
Estes avatares mostram o desfasamento que existe entre aquilo que o sujeito quer dizer e o que efectivamente diz. São como cascas de banana que atrapalham o ordenamento simbólico e as figuras do imaginário, fazem derrapar o locutor, desviam do bom comportamento, fomentam o barulho e as redundâncias da comunicação. Quando é que um psicanalista escreverá um livro intitulado «Sintoma na Comunicação», novo modo de formular o freudiano «Mal-estar na Civilização»?
O mesmo acontece com a Teoria e a Instituição analítica. Estas revelam- se cada dia mais como formas dogmáticas, hierárquicas e sempre artificiais de controlar um real sem rei nem roque. Por isso falham, conhecem rupturas e crises, sobretudo quando pretendem ser as únicas. A solução é a dissolução; ou, então, a grande conversação.
A NOVA CAÇA ÀS BRUXAS[1]
Mais de dois mil trabalhadores do campo psi (psicanalistas, psicólogos, psiquiatras, etc.) manifestaram nas ruas de Paris no dia 10 de Janeiro de 2004.
Foi um verdadeiro acontecimento, com uma dimensão pública inesperada, em particular da parte de profissionais que estão sobretudo habituados à privacidade dos seus consultórios. Vale, pois, a pena dizer uma palavra sobre o assunto, até porque os meios de comunicação portugueses preferiram ignorá-lo.
Em Outubro de 2003, o psiquiatra Philippe Cléry-Melin entregou no Ministério da Saúde francês o «Plano de acções» sobre a promoção da saúde mental que lhe tinha sido encomendado. Entre outros itens, este documento propunha a figura inédita do psiquiatra coordenador, espécie de perfeito do saneamento mental para cada região de França, que deveria doravante determinar quem tem direito a consultas de psiquiatria e o número destas. Pela mesma data, Benard Accoyer, otorrinolaringologista e futuro presidente do grupo UMP, fazia votar na Câmara dos Deputados da Assembleia Nacional uma emenda conferindo ao Ministro da Saúde, em colaboração com o Ministro da Educação, o poder de fixar por decreto as condições de exercício das psicoterapias.
Um dos problemas levantados pela emenda Accoyer é que ela apaga tudo o que caracteriza a psicanálise. No texto da emenda, esta última torna-se uma psicoterapia como outra qualquer, só podendo ser praticada por um médico ou um psicólogo. Esta exigência nega aquilo que Freud chamava a análise leiga, a psicanálise exercida por todos os que chegam a ela a partir de saberes literários, artísticos, filosóficos, científicos ou outros. Convém aqui lembrar que o importante não é que o psicanalista seja médico ou psicólogo, mas que tenha realmente uma formação psicanalítica. Aliás, possuir um diploma em ciências biomédicas não garante nenhuma competência psicoterapêutica e idoneidade moral, pois há médicos que são também puros comerciantes, pedófilos, ou serial killers.
Mas o maior escândalo provocado pela emenda Accoyer deve-se ao facto dos cerca de 35.000 psicoterapeutas e psicanalistas que exercem em França se viram ameaçados de entrarem, de um dia para o outro, na ilegalidade.
A má notícia acabou por chegar aos ouvidos dos mais atentos à coisa pública, que desde logo vieram para os jornais, a rádio e a televisão combater esta medida arbitrária, que punha em causa mais de cinquenta anos de desenvolvimento das práticas psicoterapêuticas em benefício das populações.
Accoyer respondeu-lhes que a sua emenda visava apenas proteger as pessoas que recorrem a «psicoterapeutas» dos quais se desconhece a competência e a seriedade. Foi-lhe retorquido que esta sua repentina preocupação com a defesa do profissional e do consumidor favorecia sobretudo os laboratórios farmacêuticos. É que ao destruir a especificidade da psicanálise e tentar reduzir ao mínimo a prática das psicoterapias, a emenda Accoyer vai no sentido da eliminação dos principais obstáculos à vitória final dos psicofármacos, dos quais os franceses são já os principais consumidores a nível mundial.
Como não houve consulta prévia, debate e concertação com as associações profissionais dos principais interessados, o voto dos dezasseis deputados que estavam na Assembleia Nacional quando da aprovação da emenda Accoyer foi qualificado de patologia da democracia pelos trabalhadores da saúde mental que se reuniram num primeiro Fórum em Paris.
Inúmeros intelectuais, artistas, cientistas e políticos mostraram-se também solidários com este protesto dos psis, vindo a publico para denunciar o obscurantismo da emenda Accoyer, o que contribuiu para o eco internacional que o movimento acabou por ter.
Foram ainda muitas as pessoas no mundo que então se aperceberam que esta pequena emenda ao projecto de lei sobre a saúde pública francesa era apenas a ponta visível de um icebergue ainda desconhecido[2].
Como a emenda Accoyer devia ser apreciada pelo Senado em Janeiro de 2004, os psis fizeram uma nova tentativa para esclarecer os senadores e a opinião pública sobre o que se estava a passar nos bastidores. Mas dado que a maioria no Senado francês corresponde à da Assembleia da República, cedo se aperceberam que não existiam muitas possibilidades da emenda não voltar a ser aprovada.
Foi esta a razão pela qual os profissionais da saúde vieram para a rua manifestar e declarar a desobediência civil, caso os deputados e os senadores os colocassem realmente fora da lei. A palavra de ordem foi que cada um escrevesse uma carta aos mais altos representantes da nação para lhes dizer que não aceitava o que tinham votado nas suas costas, que continuava a exercer psicoterapia e aguardava calmamente que os poderes públicos o condenassem ou o prendessem.
Dado que haviam bastantes personalidades de renome empenhadas em desobedecer a céu aberto, para evitar a guerra civil, o Ministro da Saúde, M. Mattéi, retocou a emenda à emenda Accoyer proposta posteriormente pelo senador Giraud, que obriga os psicoterapeutas a dirigir-se às esquadras de polícia para solicitar a inscrição numa lista submetida a condições desconhecidas, editadas posteriormente por decreto. No entanto, ficaram dispensados desta obrigação os médicos, os psicólogos diplomados do Estado e os psicanalistas devidamente inscritos nas suas associações.
Como a maioria dos senadores aceitou a emenda Giraud-Mattéi, o problema foi remetido para o mês de Abril, momento em que se discutiu na Assembleia francesa a aprovação definitiva da reforma da saúde mental.
Dado que até Abril existiam as eleições regionais em França, foi ao nível das regiões e junto dos seus representantes que os psis procuraram e conseguiram algum apoio. Mas, por fim, a emenda Giraud-Mattéi foi votada na Assembleia Nacional.
Voltando ao que disse atrás, a emenda Accoyer levantou o véu sobre o que se está a passar no mundo dito civilizado: a aplicação de um plano para gerir a sociedade e a saúde eliminando tudo o que é «supérfluo».
Em razão da crise actual, o que tem dominado ultimamente é uma lógica de contabilista da penúria, que levou ao aumento do desemprego e a uma grave quebra da confiança, reforçada pela tomada de medidas exorbitantes de segurança ao nível nacional e internacional.
Ao nível global ou do planeta, enquanto os países vão aderindo de força à democracia, a face desta muda. Em nome da defesa dos cidadãos, exércitos e administrações implantam medidas locais onde o imperativo de segurança se sobrepõe ao princípio da liberdade. Daí nasce um mundo contraditório, um planeta Janus, onde se desenvolvem simultaneamente regras democráticas e formas de precaução que as reduzem e acabam por negar.
Por seu turno, nos antigos Estados de direito, as pessoas andam amedrontadas e duvidando cada vez mais dos poderes estabelecidos, constantemente envolvidos em escândalos económicos, sexuais e outros. Desde logo, não ousam investir no futuro mais próximo, entram em ansiedade ou em pânico, ou tornam-se facilmente violentas. Outras procuram encontrar a segurança que falta dentro de si mesmas ou em alguém em quem possam verdadeiramente confiar.
É a ameaça da integridade pessoal que conduz um cada vez maior número de pessoas a consultar astrólogos, cartomantes, autoridades espirituais como confessores e os exorcistas, mas também os actuais técnicos da saúde mental.
Estes últimos são reconhecidos pelas nossas sociedades como os mais especializados em matéria de alma ou de espírito. Mas as consultas da especialidade acabam por se tornar caras, porque os doentes devem ser seguidos pelos profissionais durante um período indeterminado de tempo e o Estado continua a não querer ou poder comparticipar na maioria das despesas relativas às doenças mentais. O resultado conduz a diagnósticos e tratamentos feitos demasiadas vezes à pressa, um pouco como se repararam as estradas no nosso país.
Se houvesse uma verdadeira vontade política de resolver o problema, caberia ao Estado criar empregos e aumentar os meios de intervenção no sector da saúde mental pública; investiria também muito mais do que tem feito até agora nos domínios da educação e da cultura, para que os cidadãos pudessem escolher com outros critérios entre as diversas «curas» que lhes são propostas.
A preocupação em legislar sobre a actividade psicoterapêutica já existe há alguns anos, mas a sabedoria das nações tinha prudentemente deixado um vazio jurídico, não só porque não ocorrem casos muito graves de charlatanice, mas também porque as sociedades democráticas necessitam de estar continuamente abertas a todo o tipo de falatórios e de escutas. O próprio Presidente da Republica, antes de se pronunciar sobre um assunto de interesse nacional, consulta normalmente os partidos políticos.
A este vazio jurídico, veio agora opor-se a vontade de o preencher, mas praticamente tudo o que se tem conseguido é equiparar falaciosamente «o acto psicoterapêutico» ao «acto médico».
É ainda uma consequência desta falácia que leva um crescente número de psicólogos a querer associar-se numa Ordem profissional semelhante à dos médicos, de forma a poder negociar com o Estado os seus interesses corporativos.
Por vezes, os resultados obtidos são contraproducentes. Assim, a Associação de Psicologia Espanhola e os tribunais do país vizinho concluíram que já não é suficiente uma licenciatura em psicologia para praticar psicoterapia. O candidato deve agora efectuar um estágio específico e obter um diploma especializado. Esta decisão judicial conferiu aos psicólogos possuindo o novo título o mesmo estatuto que os médicos no sistema de saúde público espanhol, facto que foi visto pela Associação de Psicologia Espanhola e similares como uma importante conquista profissional. Mas é precisamente esta grande vitória que faz agora com que os psicoterapeutas que trabalhavam nas instituições públicas se sintam diante de um novo tribunal da Inquisição, que os ameaça com a fogueira da exclusão.
No nosso país, qualquer licenciado na área de Psicologia Clínica tem ainda o direito à obtenção de uma carteira profissional para praticar psicoterapia de apoio, mesmo que lhe seja aconselhada uma formação complementar numa das sociedades psicoterapêuticas existentes. Nada impede, pois, que o psicólogo prossiga a sua formação clínica, ainda que esta não possa ser verdadeiramente garantida por um diploma e um estágio suplementar, pois para além de ser interminável, depende também de um factor pessoal e até de um certo talento.
Mas a situação portuguesa tende também agora a mudar, em razão das novas preocupações corporativistas, que se irão também imiscuir na aplicação curricular do espírito iluminista do processo iniciado com a declaração de Bolonha.
Como é que tudo isto começou? Talvez com a ideia de Galileu que Deus criou o mundo em fórmulas matemáticas. Mas podemos encontrar uma resposta mais próxima de nós lendo o que Robert Musil denunciou no seu Homem sem qualidades.
O herói do romance, Ulrich, é um homem que perdeu as qualidades no dia em que se deixou fascinar pela matemática, mãe da ciência natural exacta e a avó da técnica, mas também, acrescenta, a antepassada dessa mentalidade que acabou por suscitar os gazes tóxicos e os pilotos de guerra.
Efectivamente, a partir do início do passado século, as qualidades atribuídas ao Homem do Renascimento foram cada vez mais submetidas à quantidade.[3] Musil pergunta, então, no que se tornou a alma com a massificação introduzida pela média estatística; e responde que, agora, é mais fácil defini-la negativamente: é muito exactamente o que se retrai quando se ouve falar em séries algébricas.
O que interessa aqueles que se debruçarão sobre este homem sem qualidades já não é o absoluto e o sagrado, a lei e a liberdade. O que passou a contar para eles foi o homem sem alma ou subjectividade, apenas determinado pelo seu comportamento animal. Metamorfose de Kafka.
Mas foi a quantidade venceu. Desde logo, a investigação da besta humana (Zola) abriu-se à psicofísica das suas reacções aos estímulos, à medição dos seus parâmetros orgânicos (fisiológicos, neurológicos, etc.), bem como à análise factorial dos seus traços constitucionais de personalidade.
Apesar da aparência (números, gráficos, escalas proporcionais, hostogramas, etc.), esta avaliação quantitativa do ser humano que se fragmenta em elementos de cálculo matemático, ou que se cliva em eixos, sinais e sintomas é uma falsa ciência. A Coca-Cola não é álcool, mas pode parecer.
Mesmo se esta pseudo ciência confunde avaliação bioneurofisiológica, psicológica, social e ética, ela interessa bastante ao espírito burocrático (também denunciado por Kafka) das administrações que procuram informações numéricas para gerir os recursos humanos e não só.
Como não convém a interesses poderosos o que os factos assinalam, isto é, um número crescente de pensamentos enviesados e de comportamentos desviantes (ditos criminosos, psicopáticos, toxicodependentes, delinquentes, desadaptados, psicopatológicos, etc.), os «técnicos» da saúde começaram a prometer aos poderes estabelecidos a despistagem dos variados males que podem atingir a máquina homeostática dos «caros» cidadãos.
Como mais vale prevenir do que remediar, os Ministérios da Saúde, da Educação e da Justiça de vários países começaram a assinar protocolos de cooperação para sondar e prever os comportamentos desde a mais pequena infância. Por exemplo, procuram-se agora nos infantários as crianças com diversos tipos de problemas (que serão rotuladas de atrasadas, irrequietas, hiperactivas, sobredotadas, etc.) e medicalizam-nas ou psiquiatrizam-nas juntamente com os pais, para que todos se portem bem ou conforme às exigências do momento. Durante este processo reeducativo, as informações necessárias aos diferentes poderes são retidas e processadas, graças ao cruzamento dos dados dos inventários sobre os sujeitos e as suas famílias. Assistimos deste modo, no início do século XXI, à realização de uma fantasia totalitária semelhante à do começo do século XIX.
Procedimentos neo-higienistas geralmente testados e importados do Canadá acabaram por se infiltrar em todos os domínios da sociedade, da escola primária ao hospital, das universidades às empresas, dos tribunais às prisões. Com eles, pretende-se avaliar as condutas de cada indivíduo e, em nome da boa gestão, estabelecer standards em que a média estatística se torna a norma.
Com o pretexto de fixar as boas práticas, este espartilho do sem limites que efectivamente reina, acaba por provocar a «paranóia da segurança», ignorar a história, arruinar a reflexão e por em questão a responsabilidade subjectiva e colectiva.
Apesar de se auto-intitularem muitas vezes «cognitivas», as técnicas utilizadas nesta estandardização de massa são um verdadeiro desastre para o pensamento, nomeadamente porque desconhecem o que no ser humano é radicalmente refractário ao mensurável. Se guardássemos um verdadeiro espírito científico, se fossemos honestos, teríamos de convir que, em qualquer tratamento psíquico, há qualquer coisa que escapa à mensuração, à comparação, e que é precisamente desse resto que a psicanálise faz o seu objecto e extrai a sua razão de ser.
Luborsky e os seus alunos concluíram que 69 % das meta-análises reagrupando estudos que codificam e calculam os resultados terapêuticos pela magnitude dos efeitos (effect size) sobre os pacientes, antes e depois da aplicação das respectivas técnicas, correspondem à aceitação prévia que o investigador tem das mesmas. Como a maior parte da investigação sobre as terapias empiricamente válidas é efectuada por adeptos das técnicas cognitivo-comportementais, é normal que estas obtenham sempre nos Relatórios uma taxa de eficácia muito superior do que as das duas outras terapias normalmente avaliadas (as psicoterapias breves e as terapias familiares).
O neo-comportamentalismo é em boa parte um retorno a Pavlov[4], Watson[5] e Skinner, ainda que este último tenha deixado de acreditar no fim da sua vida na filosofia que inspirou o seu condicionamento operante.
Todavia, o maior problema disto tudo é que não se pode tratar um sintoma psíquico como se toma um antibiótico para matar um vírus. O sintoma psíquico não é um objecto de ciência e de experimentação laboratorial ou de sala de operações. Para que uma psicoterapia possa ter valor é necessário a adesão afectiva e inteligente daquele que a pede e deseja, ou seja, que o paciente se torne um verdadeiro agente no tratamento e avaliação do resultado. Num procedimento onde não se trata propriamente de cura, mas da procura da verdade própria a um modo de ser, é normal que não se consiga ultrapassar a apreciação subjectiva.
Uma outra coisa é o homem objecto, objecto de ciência, objecto de investigação, objecto clínico e objecto de regulamentação. Este novo homem não é apenas um produto fragmentado do Homem do humanismo, é sobretudo a negação radical daquele que sabia ser a medida de todas as coisas.
O homem objecto de medição levou agora a uma nova caça às bruxas. Só que se esta sair vitoriosa, aquilo que expulsa hoje pela porta da casa da realidade psíquica voltará um dia destes intempestivamente pela janela.
É certo que esta caça está a assustar muitos pacientes e a dificultar a vida aos psicoterapeutas, mas também a criar condições objectivas para que reapareçam velhos males há muito desaparecidos, como as epidemias histéricas, o fanatismo religioso e seitas bastante mais delirantes do que aquelas que já existem.
Um exemplo de retorno do recalcado é o das novas patologias que surgiram recentemente nos Estados Unidos da América, tais como os raptos de extra-terrestres. Esta é uma bitola que permite «medir» a órbita mental do país que está há mais de cinquenta anos na vanguarda do «progresso» quantitativo. Como estamos bem longe da «antiquada» reflexão de Freud sobre o mal-estar na civilização, a cura e o incurável do ser humano!
A cada vez maior procura do lucro imediato tem levado a uma constante tentativa de redução das despesas inúteis. Os responsáveis por esta «boa» gestão tendem progressivamente a pensar que não devem ser incluídos nos cuidados de saúde os tratamentos que apenas ajudam as pessoas na sua introspecção e desenvolvimento pessoal, a ultrapassar um luto ou uma separação difícil, a tomar decisões profissionais e existenciais ou, simplesmente, a procurar o bem-estar e a qualidade de vida. Neste quadro, os técnicos da saúde apenas se deviam ocupar das «verdadeiras» doenças e num número extremamente limitado de consultas.
Para reduzir um pouco mais os custos, começaram-se a operar transferências de competências dos psiquiatras para os psicólogos clínicos que utilizam as definições do DSM-IV. Para o efeito, alguns países tem vindo a introduzir este tipo de psicoterapias na nomenclatura do código da saúde e a pedir uma formação suplementar adequada. Mas o afunilamento (os poucos lugares existentes para psicólogos nos hospitais e centros de saúde, a selecção dos candidatos através de despesas extras, «cunhas», etc.) que resulta desta opção, permite, em seguida, afastar dos locais os psicólogos que têm uma outra orientação.
É verdade que alguns destes últimos podem ser recuperados, se aceitarem voltar aos bancos da escola para serem redoutrinados e reavaliados. Mas a maioria terá de modificar a sua denominação profissional, passando desde logo a se falar de «consultores», «conselheiros», «treinadores» (coach), etc. Por este andar, as correntes da psicologia que não se alinham à psicologia dominante deverão também, a médio ou curto prazo, ser excluídas dos departamentos universitários.
Esta selecção cultural repousa na avaliação dos comportamentos considerados aptos ou inaptos. Evolução, adaptação, reeducação são, aliás, as palavras-chave daqueles que impõem, de preferência com um sorriso nos lábios, a nova normalização.
É uma mundovivência onde o ideal da saúde permanece muitas vezes o de Bichat: o silêncio dos órgãos. E é o cadáver dos anatomopatologistas que continua a ser o melhor dos «sujeitos, ou dos objectos médico-científicos, dado que nunca se queixa nem se desvia da norma.
Ora, a psicanálise e as psicoterapias que nela se inspiram não se apoiam no número de cadáveres e no silêncio dos órgãos, mas na fala do sujeito.
Até agora, a psicanálise e as psicoterapias puderam desenvolver a sua diferença específica nas sociedades democráticas sem a intervenção do Estado.
É que a qualidade do psicanalista não se obtém por intermédio de uma lei, de um título universitário e de um estágio clínico numa instituição. A formação do psicanalista baseia-se na análise pessoal e didáctica. Para além destas, as escolas de psicanálise têm todas a sua disciplina, a sua técnica, os seus seminários e controlos, o que leva a uma formação muito mais longa e complexa do que a formação básica de um médico.
O psi ocupa-se de um nível de realidade que não pode ser meramente explicado pela biologia e a sociologia, nem tratado pela medicina científica. Ele deve sobretudo ajudar o sujeito que lhe fala livremente a resolver por si próprio o problema que afecta a sua mente e corpo, que pode ficar enredado num sonho, numa fantasia, numa alucinação delirante, ou desencadear-se num sintoma de conversão ou num fenómeno psicossomático.
A psicanálise e as psicoterapias partilham ainda uma deontologia, senão uma ética, que exige que aquilo que o sujeito diz nas consultas não seja divulgado em nenhuma circunstância, mesmo para o bem da Ciência, da Medicina e da Sociedade. Como poderiam, pois, os poderes do Estado ou das Ordens profissionais garantir publicamente algo que se deve passar na maior confidência e confiança.
Existem hoje demasiadas vozes ansiogénicas que fragilizam as pessoas lançando o descrédito sobre os seuspsicoterapeutas. Mas mesmo se ocorrem alguns casos de burla, o perigo é sobretudo imaginário e, em democracia, não se deve amedrontar os cidadãos, nem travar o medo assim provocado com leis ou emendas forjadas à pressa.
Cada pessoa deve continuar a ter o direito de escolher o seu psicanalista ou psicoterapeuta sem interferência do Estado; e cabe unicamente aos psis garantir ao público, através das suas associações e escolas, a qualidade de uma formação clínica e ética.
O que poderia eventualmente existir seria uma representação colegial das diferentes organizações profissionais junto do poder político, por exemplo, um Secretariado de Estado para o assunto. Mas isto supunha que os governos reconhecessem as virtudes da autoregulação associativa neste domínio e aceitassem enquadrá-la pela lei.
Porém, como Freud, penso que o problema não se resolve com uma lei, mais ainda, que as leis inúteis enfraquecem as leis necessárias. Mas se a vontade geral for mesmo de legislar sobre as psicoterapias, então, que os governos consultem primeiro os verdadeiros entendidos no assunto, pois o que está em jogo não é só uma política nacional, europeia ou até mundial da saúde, mas uma escolha de sociedade e o futuro do ser humano.
[1] Comunicação feita nas X Jornadas do Centro de Estudos de Psicanálise (ULHT, Junho 2004). Este texto foi publicado posteriormente em Ditos III (Lisboa: Fim -de-Século). Em razão da sempre actual realidade que trata, resolvi republicá-lo na Carta ACF como base de discussão.
[2] O problema não é só europeu mas mundial. Por exemplo, no Peru, os colegas da International Psychoanalytical Association (IPA) não conseguiram que o Estado acredite o título de psicanalista. A partir daí, a única solução que encontraram foi a da marca registrada (trade mark). Agora, oferecem-se no mercado das psicoterapias com um slogan do tipo «Comprempsicanalista da marca IPA».
[3] No seu comentário sobre a Gradiva de Jensen, Freud faz referência ao caso clínico de um rapaz que fugiu pela via dos estudos de geometria e de matemática ao despertar da primavera da sua puberdade. Mas esta fuga foi travada no dia em que se confrontou com dois problemas científicos aparentemente inócuos, o da colisão de dois corpos e o da inscrição de um cone num cilindro.
[4] Pavlov sempre adaptou e se adaptou ao regime da antiga União Soviética. Numa recente publicação do Fórum Psi on-line, o Guy Briole escreve o seguinte : «A leitura do relatório do INSERM (nstitut National de Santé et de Recherche Médicale) sobre as psicoterapias deixa uma impressão de mal-estar, de repulsão. Este relatório, que é um verdadeiro plebiscito em favor das terapias cognitivo-comportementais (TCC), lembra irresistivelmente os do Instituto Serbsky. Este instituto psiquiátrico de Moscovo tornou-se célebre com o caso Grigorenko — figura politica que se opôs a Estaline quando dos massacres da Crimeia, que nunca foi preso, mas enviado para o Instituto Serbsky, onde foi diagnosticado como sofrendo de um «distúrbio da personalidade com presença de ideias reformistas». Nos anos 70, este mesmo Instituto tornou-se especialista nos comportamentos desviantes dos cidadãos doentes. A maioria dos «dissidentes» terão, então, tratamentos com neurolépticos e técnicas cognitivo-comportamentais, supostas capazes de os tornar aptos à vida colectiva após uma «reeducação das atitudes». Neste tipo de abordagem cognitivo-comportamental, a contestação torna-se uma manifestação de patologia mental, um desvio em relação à norma. É o que os comportamentalistas modernos chamam os erros no «processamento da informação». Só as TCC permitiriam a correcção destes tristes erros. O Intituto Serbsky pôde mesmo, numa certa época, levar esta prática até às suas últimas consequências. Um artigo recente da Pravda mostra a reorientação do Instituto. O seu director confirma que o terrorista tchétcheno Salman Raduyev não apresentava nenhum sinal de «desvio mental». Pelo contrário, ele possuía um «forte potencial psicológico». Acrescenta que todos os terroristas deviam passar por testes semelhantes.
[5] Watson induziu experimentalmente uma fobia de ratos em Albert B, um menino de onze meses. Em vez de descondicionar imediatamente a criança, que passou a chorar e a fugir aterrorizada quando via ratos e outros animais e objectos com pêlo, Watson preferiu dizer algumas piadas a propósito daquilo que os psicanalistas diriam vinte anos mais tarde sobre a causa desta fobia infantil.