Começo por dizer algumas palavras sobre o título genérico do Seminário ACF deste ano, que será animado em dois tempos por mim e pelo Filipe Pereirinha: o “primeiro” e o “último” ensino de Lacan refere à ordem de leitura do percurso de Lacan estabelecida por Jacques-Alain Miller.
Em Le tout-dernier Lacan, Miller sublinhou ainda a existência de um “ultimíssimo” ensino, mas também de um primeiríssimo ensino, ou seja, o ensino de Lacan como médico psiquiatra, companheiro dos surrealistas, mas no qual podemos igualmente incluir o que Lacan disse e escreveu durante os anos da sua análise - no quadro da Sociedade Psicanalítica de Paris -, começada em 1932.
Como disse Miller na Vida de Lacan, o que caracteriza o primeiríssimo ensino é a recusa do Outro. Mas o que caracteriza o primeiro ensino – aquele que vou abordar neste meu Seminário - é a introdução e a prevalência do Grande Outro (A) na psicanálise.
Pode-se sempre criticar ou não querer saber da ordem de leitura proposta por Jacques-Alain Miller. Pode-se perder a sua preciosa orientação, mas também simplificá-la, como fez o Filipe Pereirinha numa recente apresentação do seu Seminário, onde reduz os muitos possíveis Lacan a dois. É destes dois que nós os dois vamos falar numa espécie de torção borromeana.
Vou comentar este ano o Seminário I de Lacan, Os Escritos Técnicos de Freud. O que irei dizer vai também girar em torno deste Seminário, mesmo se serei obrigado a fazer várias incursões no último e ultimíssimo ensino de Lacan.
Apesar de se reunir há já cerca de dez anos com os analistas da SPP mais interessados no estudo das Cinco Psicanálises de Freud (Lacan trabalhou muito particularmente os casos do Homem dos Lobos, do Homem dos Ratos e de Dora em Seminários no hospital Sant’Anne consagrados ao “retorno a Freud”), exposto em Roma (1953) o célebre Relatório intitulado A Função e o Campo da Fala e da Linguagem na Psicanálise, e proferido a sua conferência sobre O Simbólico, o Imaginário e o Real (1953), o Seminário I (1953-54) é, do ponto de vista do seu “verdadeiro ensino” como psicanalista, o primeiro da série dos Seminários que têm vindo a ser publicados pelo seu “executor testamentário”, Jacques-Alain Miller.
Lacan prossegue o estudo dos casos de Freud no Seminário III (sobre Schreber), no Seminário IV (Pequeno Hans) e um pouco por todos os outros Seminários. Ele pensa que Freud trouxe essa literatura, mas que já não interessa mais expor e comentar casos clínicos como um romance familiar, ou um mito individual do neurótico, pois a verdadeira psicanálise está para além dessa retórica. Lacan julga que os casos de Freud bastam para o efeito pretendido, mas que o seu ensino se situa num outro plano.
Queria lembrar que o Seminário I veio a lume (Edições do Seuil, 1975) durante a vida de Lacan, logo que este pôde dar o seu aval à ordem de publicação dos Seminários e ao texto estabelecido por J-A Miller.
O último Seminário da série, o 26°, é a A topologia e o tempo (1978-79). É verdade que Lacan deu mais três lições de um novo Seminário, intitulado Dissolution (1979-80), mas este foi por assim dizer o acto de dissolução da referida série dos Seminários e, ao mesmo tempo, da dissolução da Escola Freudiana de Paris (5 de Janeiro de 1980), instituição que Lacan disse, em 1964, ter fundado, sozinho, na sua relação com a causa analítica. Neste momento de concluir Lacan-o-fora-de-série dissolve, pois, o seu ensino e a sua Escola.
Alguns anos antes da dita-solução, no Seminário XXIII (1975-76), Lacan retomou o seu “sozinho” fundador de 1964 afirmando que aquilo que tinha inventado se reduzia finalmente ao sinthome. É esta singularidade que faz com que Lacan não tenha podido legar realmente mais nada aos seus alunos, senão o exemplo de um saber-fazer com o seu sinthome.
O velho Lacan deixou-os deste modo num patatras (carta à EFP de 26 de Janeiro de 1981), termo que designa o estardalhaço que faz o corpo que cai violentamente no chão, mas também um jogo de sociedade (tric-trac), aonde se perde quando caiem os bonecos que se foram encaixando em montanha russa.
Assim sendo, é até um certo ponto normal que seja também a um jogo de sociedade que se tenha livrado o monte (tas) de psicanalistas e associações que se reclamaram em seguida do ensino do morto.
Ao mesmo tempo que evocou o patatras, Lacan deu carta-branca a todos os que entendessem retomar o seu testemunho na estafeta da psicanálise, cabendo desde logo a cada um saber-fazer invenção do seu sinthome ou mostrar o que vale.
Mas, antes de falecer, Lacan lançou ainda para o ar duas ideias: a primeira é que não se deixasse que os discursos dominantes - o do amo moderno ou do capitalista e o da ciência, e, nos lugares onde a burocracia passou a dominar, o discurso universitário - assassinassem a psicanálise. Convidou deste modo aqueles que lutavam pelo discurso do analista a prosseguir a reconquista do “campo freudiano”. A segunda ideia, associada à primeira, foi que se criasse uma nova base de operações onde os mais decididos a lutar pelo discurso do analista pudessem se associar; evocando então a Causa freudiana, disse: “a Causa terá a sua Escola” (carta à EFP de 23 de Outubro de 1980).
Falecido em 9 de Setembro de 1981, já não foi Lacan, mas Jacques-Alain Miller que acabou por reunir alguns outros e fundar a Escola da Causa Freudiana de Paris, no final de 1981.
A EFP durou 16 anos e a ECF já tem 37 anos. Da primeira pouco restou. A segunda cresceu e tem hoje inúmeras parcerias com outras Escolas, Sociedades e Grupos dentro e fora da Associação Mundial de Psicanálise.
O que é uma verdadeira Escola de psicanalistas? Há partida podíamos dizer que é uma instituição que reúne artificial ou oficialmente uma multidão de sintomas. Jacques-Alain Miller adiantou ainda, em 21 de Maio de 2000, na chamada “teoria de Turim”, que esta é apenas a etapa final da constituição legal do sujeito de direito colectivo que é uma Escola, pois o que basicamente interessa é que a transferência de trabalho que aí se fomenta devenha o sujeito suposto saber dos membros que a Escola representará. O saber produzido (no lugar da verdade) é aqui um excelente critério para avaliar a excelência de uma Escola. Por esta razão também a ACF sempre apostou na produção de um saber que transmita o ensino de Lacan com o máximo rigor.
Como está mencionado na primeira edição francesa do Seminário I, apenas possuímos 22 aulas dadas por Lacan, já que faltam as lições do final do ano de 1953.
J.-A. Miller dividiu a transcrição desse ensino oral de Lacan em cinco grandes capítulos. Depois da Abertura, em que Lacan apresenta o psicanalista como um Mestre Zen, o 1º capítulo tem como título “O momento da resistência”, o 2º capítulo desenvolve a “tópica do imaginário”, o 3º caminha “Para além da psicologia”, o 4º fala dos “Os impasses de Michael Balint”, e o 5º é sobre “A fala na transferência”.
O 1º capítulo distingue, entre outras coisas, a “análise do discurso” e a “análise do eu”, distinção que Lacan sobrepõe à distinção clássica entre “análise do material” e “análise das resistências”. O material da talking cure consiste nas palavras que chegam ao analista pela via da fala do analisando. A análise do discurso (ou do desejo) mobiliza a estrutura e as leis da linguagem, enquanto a análise das resistências se debruça sobre o Eu psicológico do sujeito que fala.
A interrogação sobre o Eu vai conduzir Lacan a uma reelaboração da tópica do imaginário (2º capítulo), a qual estava anteriormente focada no “estádio do espelho” (1936-45). O desenvolvimento desta tópica obriga Lacan a recordar aos presentes os três sistemas de referência que introduzira numa conferência de 1953, a saber, o Simbólico (S), o Imaginário (I) e o Real (R). O Seminário I afirma a primazia do Grande Outro o do Simbólico sobre o Imaginário, mas também sobre o que se pode apreender como Real.
Ao mesmo tempo que retoma as três dimensões, Lacan vai se afastando de tudo aquilo que se chama “psicologia” (3º capítulo).
A descoberta freudiana do Inconsciente encontra-se para além da Psicologia. Lacan denunciará sempre qualquer inclusão da psicanálise na Psicologia Geral. Na p.127 dos Écrits encontramos por exemplo o seguinte: nous les voyons donc, sous toutes sortes de formes qui vont du piétisme aux idéaux de l’efficience la plus vulgaire (…) se réfugier sous l’aile d’un psychologisme qui, chosifiant l’être humain, irait à des méfaits auprès desquels ceux du scientisme physicien ne seraient plus que bagatelles.
Foi infelizmente este rumo psicologisante que seguiram muitos psicanalistas, a começar pelo próprio analista de Lacan, Rudolph Löwenstein, um dos promotores da Ego Psychology nos EUA.
Pode-se, pois, entender que Lacan não tenha querido prosseguir a sua análise com Löwenstein, na medida em que este não a podia levar mais além do reforço do Ego.
Depois de citar os impasses de vários outros colegas da IPA (Anna Freud, Melanie Klein, Annie Reich, Jean Bergler, Otto Fenichel, Ernst Kris, etc.), o 4º capítulo tece uma crítica de Michael Balint, a propósito da confusão que este prolonga entre “relação de objecto” e “relação inter-humana”.
O 5º capítulo formulará finalmente o conceito da análise como uma praxis e não como uma “técnica”.
Seminário I - O Primeiro Ensino de Lacan disponível na íntegra para download ou visualização online:
Ser "lacaniano" é, muitas vezes, a tentação de imitar um estilo: difícil, intrincado, obscuro. Acontece que o próprio Lacan - difícil, intrincado e obscuro - sugeria às vezes para fazerem como ele, isto é, não o imitarem. E se há marca genuinamente lacaniana, a meu ver, é esta: uma incessante divergência de si mesmo, um desassossego em relação ao já adquirido, um eterno apontar de novas direções, buscando sempre, como diria Beckett, falhar cada vez melhor o real, da praxis, que se trata de bem dizer ou fazer. Tal divergência de si mesmo, além de desacreditar qualquer imitação, ou torná-la inócua, leva-nos a perguntar se Lacan, mais do que as setas que lançou à direita e à esquerda, não terá sobretudo retesado o arco contra si mesmo, de Lacan contra Lacan, como sugeriu algures Jacques-Alain Miller. A ser isto verdade, tal pressupõe que não há apenas um Lacan, seja ele "linguista", "estruturalista" ou outro, que pudéssemos facilmente reduzir ou imitar, conforme a nossa própria simpatia ou conveniência de momento, mas antes vários: um primeiro, um segundo, um último, um ultimíssimo, enfim. Em vez do eterno retorno do mesmo, a leitura de Lacan, tal como a audição da sua fala ou a visão de algumas intervenções singulares hoje acessíveis em rede, confrontam-nos com alguém numa eterna, e por vezes trágica ou cómica, busca do que não bate certo, que não combina naturalmente, que forma um grão renitente na mó que tritura a farinha comum. Para não complicar demasiado as coisas, porém, reduzamos a questão a um mínimo de dois, um primeiro e um segundo Lacan, o que permite já instaurar uma diferença e interrogar o novo, em particular, no "segundo" de ambos. É esta a minha aposta deste ano no seminário que animarei todas as quintas-feiras, entre as 12h e as 14h, na Casa da Idanha-a-Nova, avenida da Liberdade, Lisboa, a partir do dia 12 de outubro. É minha convicção que é no aprofundamento deste "segundo ensino" de Lacan, que não renega o "primeiro, antes o relativiza ou faz variar, que podemos bem dizer o que fazemos enquanto psicanalistas, ler bem o que se escreve de uma fala que nos é dirigida ou, por último mas não menos importante, aprender a ler melhor o mundo que é o nosso neste conturbado século XXI.